Notas para a compreensão do actual Estado de Emergência (I)

Parece-me cada vez mais pertinente na compreensão do que se está a passar a noção de bioterror. Isto não quer dizer que o vírus que desencadeou a actual situação, levando ao estado excepcional de hoje, tenha sido criado obrigatoriamente em laboratório com o intuito de atacar alguém ou algum país. É cedo para fazer a história do vírus. A história requer um distanciamento temporal que ainda não existe. O que se pode desde já afirmar com segurança é que o vírus criou uma situação de bioterror que reforçou o poder do Estado sobre a sociedade e levou a uma disputa geopolítica – a reposição das fronteiras na União Europeia é um exemplo – com contornos novos e inesperados.

Independentemente da sua origem, a actual situação de emergência pode a meu ver incluir-se naquilo que vários pensadores recentes chamaram de eco-fascismo. Este caracteriza-se por situações autoritárias de excepção em nome da gestão de recursos escassos ou de calamidades naturais ou biológicas extremas. O momento actual não é ainda a constituição dum poder com tais características mas é um excelente ensaio para algo que está ainda para chegar. Não será inusitado que o século XXI se caracterize por um COVID-19 que será seguido por um COVID-31 e lá mais para diante por um COVID-77. A resposta do Estado em situações de colapso será sempre um reforço do seu poder de excepção sobre a sociedade. Uma nova ordem constitucional pode estar em marcha.

Depois de estabilizada e vencida esta primeira ameaça que começou em 2019, não parece possível regressar ao passado recente. O Estado não vai perder o que entretanto ganhou. Saiu reforçado e com poderes excepcionais desta crise e vai querer mantê-los em nome das ameaças próximas. Tudo aponta pois para um reforço imediato do papel do Estado na sociedade (ou no que dela restar), muito mais extenso e fundo do que aquele que se seguiu ao 11 de Setembro de 2001. Aqui convém ter em linha de conta a informatização/digitalização da vida social e pessoal. Nunca o controle de tantos por tão poucos foi possível e de forma tão total e anónima.

Esta nova deriva autoritária do Estado deixa em aberto a pertinência da crítica libertária ao Estado. Ao eco-fascismo, ao reforço das soluções autoritárias e totalitárias, que levarão a uma sociedade amorfa, o pensamento libertário contrapõe a necessidade duma sociedade adulta, solidária e emancipada, capaz de dar resposta inteligente a situações de excepção e sobretudo capaz reformular as suas relações com a natureza e a vida, que estão com certeza na origem de muitos dos problemas que empurrarão o século XXI para um «estado global de emergência permanente». O colapso das instituições de saúde pública e da economia, quer dizer, o colapso do modo de vida tal como o conhecemos na segunda metade do século XX, é a partir de hoje o horizonte do nosso século.

Daí a necessidade de mantermos aceso o diálogo entre libertários, preparando-nos para os debates que aí vêm. Estas notas terão continuidade e serão publicadas neste lugar se não diariamente ao menos semanalmente. Elas foram estimuladas pelas reflexões aqui publicadas pelo Eduardo Sousa e pelo Paulo Guimarães e destinam-se a contagiar outras.

A. Cândido Franco

31-3-2020

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