O “esquerdismo”, termo recuperado de uma crítica de Lénine aos seus sectores mais radicais, desenvolveu-se sobretudo após a II Guerra Mundial em boa parte sob o efeito das obras publicadas por homens como Cornelius Castoriadis, Claude Leford, Paul Baran & Paul Sweezy, Ernest Mendel, Raniero Panzieri, Mario Tronti, Sergio Bologna, Toni Negri, Ferrucio Gambino, Pierre Broué & Emile Témime, Daniel Cohn-Bendit e outros expoentes teóricos ou políticos deste criticismo de esquerda dos PC’s, assim como devido aos veículos que constituíram as revistas Socialisme ou Barbarie (Fr., 1949->), The Monthly Review (USA, 1949), New Left Review (UK, 1960) ou Quaderni Rossi (It., 1961), à parte dos jornais ou magazines ilustrados de afirmação e propaganda destas diversas tendências. Podemos ainda encontrar alguma associação dos citados com pensadores da Escola de Frankfurt, sobretudo com Marcuse e Habermas, também com o pensamento de Michel Foucault, enquanto que o existencialismo de Sartre só numa fase tardia o levou a tais aproximações.
Alguns provieram ou desenvolveram-se nas faldas dos vários “trotskismos”, de que foram meramente tribunos partidários homens como Michel ‘Pablo’, Pierre Frank, Pierre Lambert, Livio Maitan ou Juan Posadas, rejuvenescidos por soixante-huitards como Alain Krivine, Tarik Ali ou, tardiamente, Arlette Laguiller.
Outros nasceram nos anos 60, à luz do desentendimento sino-soviétivo, mas não perderam tempo para se multiplicar em múltiplos “maoismos”, bem mais antagónicos entre si do que os “reformistas” históricos do Cristianismo. Mas “figuras de proa” como André Glucksmann e Serge July perduraram longamente, arranjando prolongamentos instrumentais como os jornais Libération ou Le Monde Diplomatique, e expressões mais aprimoradas como os “Nouveaux Philosophes”, com Bernard-Henri Lévy à cabeça.
Menos tipificados ideologicamente, foram os seguidores do “guerrilheirismo” dos anos 60, que se esforçaram por criar doutrina a partir das experiências lutadoras de Fidel Castro e Che Guevara, ou mesmo dos fellaghas do FLN que vencerem os franceses e puseram Ben Bella como primeiro Chefe do Estado da Argélia independente. Mais longinquamente, todos tinham recebido inspiração da “grande marcha” maoista e da sua suposta revolução socialista camponesa, mais dos Giap e Ho Chi Minh que comandaram nas selvas indochinesas a guerra para a expulsão de franceses e americanos. Porém, na Latin America (com o “Tio Sam” sempre vigilante) os seus sucessos foram poucos ou efémeros. O Tupamaro uruguaio José Mujica acabou por presidir ao parlamento e ser eleito presidente da república depois de algum rejuvenescimento da democracia naquele país. Mas o antigo comunista Marighella viu frustradas as suas tentativas de aplicar a “teoria do foco” no Brasil. E na Nicarágua ainda hoje temos o triste resultado da vitória guerrilheira dos Sandinistas. Para todos eles, Régis Debrey foi um pensador de referência.
Nas lutas independentistas da África negra já não poderemos falar de “esquerdismo”, tal foi o apoio declarado (e instrumentalizado, no âmbito da “guerra fria”) de Moscovo e do Bloco de Leste a esses movimentos nacionalistas, os quais absorveram quase inteiramente as suas concepções autoritárias, centralistas e implacáveis de acção política.
De modo mais matizado pode olhar-se para o processo que ocorreu no Chile e que tragicamente acabou em 1973 com o golpe-de-Estado de Pinochet. Aqui misturaram-se influências democráticas (de Allende e outros moderados) com o esquerdismo do MIR (Movimiento de Isquierda Revolucionaria), uma forte pulsão anti-yankee e decerto as manobras ocultas (de sentido contrário) da CIA e da “mão moscovita”.
Bastante distantes destes mas, mesmo assim, muito críticos das soluções marxistas para uma reestruturação profunda das sociedades contemporâneas, podemos encontrar ainda neste período alguma expressão de “esquerdismo” na continuidade do filão anarquista ou libertário em George Orwell, Daniel Guérin, Louis Mercier-Vega, Stuart Christie ou no linguista norte-americano Noam Chomsky. Das suas posições “parcialmente esquerdistas”, encontramos ecos nas melhores revistas desta corrente à época, como foram Volontà (It., 1946), Anarchy (UK, 1961), Anarchisme et Non-Violence (Fr., 1965), La Rue (Fr., 1968) ou Interrogations (Fr./It., 1974).
Identicamente, com alguns pontos de contacto com o esquerdismo mas prosseguindo o seu diálogo crítico, seja com o racionalismo humanista ou com a história, tivemos figuras importantes do pensamento filosófico como Bertrand Russel, Heidegger ou Ortega y Gasset. Com Lanza del Vasto tivemos a tentativa de entrelaçar o espiritualismo activo mas não-violento indiano (de Gandhi e outros) com as realidades ocidentais. Ou ainda o diálogo com o catolicismo em que se reviam, no caso do personalismo de Emmanuel Mounier e Jean-Marie Domenach, e da revista Esprit (Fr., 1932). Sendo que, no segundo pós-guerra, o catolicismo brasileiro da “teoria da libertação” também se aproximou de algumas das expressões coevas e regionais do esquerdismo.
Que resta hoje destas heranças? Talvez os actuais “movimentos societais” que, “via redes”, exprimem versões frescamente formalizadas das suas sensibilidades identitárias. Provavelmente também os que instigam nos ocupantes do poder democrático inflexões mais radicais “à esquerda”, garantias por lei, e do modo mais perdurável possível. O que é uma estranha maneira de afirmar “o poder do povo”, sobretudo para aqueles que sustentavam que esse poder saía “do cano da espingarda”.
JF / 2.Setembro.2022