No desenvolvimento das sociedades tendo havido “momentos de viragem” que lançaram a Humanidade para novas etapas da sua história. Lembremo-nos da invenção da tipografia e da importância que a imprensa passou a ter nos países ocidentais a partir do século XV, com os livros e jornais a saírem com uma produtividade incomparavelmente maior e preço muito mais baixo. A escolaridade e a informação modernas começaram aqui.
Desde há pouco mais de um século que as nossas sociedades inventaram três novas actividades de recreio de massas com fantástica capacidade de expansão e com efeitos de envolvimento emocional e psicológico de milhões e milhões de seres humanos: o desporto, a música e o cinema. Nascera a sociedade dos espectadores.
Cada uma destas actividades criou os seus próprios protagonistas e, de entre eles, os seus próprios heróis, com os reis e outros governantes a ficaram um pouco mais ensombrados. Também forjou as suas específicas técnicas, abrindo novos mercados para a produção dos respectivos artefactos. E finalmente, galgando fronteiras, desenvolveu um sector económico autónomo, com exigências de investimentos, produção, circulação e consumo que foi alimentar fortemente um cada vez mais poderoso ramo da economia: os serviços.
Mais difusa mas não menos importante foi a crescente instalação dos meios de comunicação eléctricos/electrónicos. Se o telégrafo serviu apenas os governantes, os patrões das grandes empresas, os militares e as nascentes agências noticiosas, já a radiodifusão jugou um papel importante na propaganda política logo no período pós-1ª Guerra Mundial. E a televisão “massificou” o planeta a partir de meio-do-século. O número de ouvintes/espectadores multiplicou-se exponencialmente, desta vez com técnicas de manipulação mais sofisticadas, atinentes à “montagem” das peças difundidas.
Com a tele-informática, a Internet e, agora, “as redes” e os Smarphones, entrámos num novo mundo hiper-comunicante, anárquico (no pior sentido) e talvez muito perverso. Traz-nos à memória o “fonóforo” do romance Eumeswil de Ernst Jünger, traduzido em português pela Ulisseia, ou o filme Fahrenheit 451, do Truffaut, um must dos anos 60. Mas sobre o tema não falta hoje quem nos alerte para os perigos desta realidade insidiosa que, ainda assim, inspira alguns para visões algo positivas: onde todos mentem, insultam, manipulam e certos conspiram, ninguém já conseguirá levar “a sua” avante. Como turning point, é mais rastejante, mas já está a condicionar brutalmente o presente e decerto o futuro.
Centremo-nos aqui apenas no “velho” meio de informação (também de entretenimento e mais raramente de cultura) que é a televisão. Apesar da sua indispensável função noticiosa, são hoje cada vez mais os cidadãos que já “enjoaram” o tipo de notícias que os diversos canais nos trazem a toda a hora. A concorrência entre estações deixou em grande parte de servir um maior pluralismo dos noticiários: todas batem os mesmos assuntos, chamam comentadores equivalentes (tanto “pró” como “contra”) e põem “em directo” repórteres que querem maioritariamente agradar aos seus chefes aproveitando o mais que podem o “tempo de antena” que lhes é dado para sobressaírem naquela tarefa. Realmente, mostram quase sempre desembaraço no falar mas igualmente revelam quão pobre é o entendimento que têm do que nos estão a mostrar e um seu enquadramento mais amplo. De resto, se subirmos até aos pivots (sobretudo nas horas menos-“nobres”) e a boa parte dos especialistas convidados, o seu discurso não é de muito melhor qualidade, pautado sobretudo por “bengalas”-em-uso como “estamos a falar de…”, “janela de oportunidade…”, “… daquilo que é…”, ou então abusando do jargão técnico-político dominante quando empregam termos como “capacitação”, “resiliente”, “contingência” ou os vários anglicismos que se vão infiltrando na nossa língua materna.
Na escrita, até as palavras estão a mudar. Não falamos da literatura, romanesca ou poética, que são mundos à parte. Mas quem tenha seguido desde há décadas o melhor jornalismo francês ou português não deixará de notar como agora, cada vez mais, se vai escrevendo diferente, na construção e gramática das frases, mas sobretudo em algum vocabulário e nas titulações, com palavras inventadas de novo e expressões sincréticas provavelmente importadas das “redes sociais”.
Já temos visto jornalistas “da velha geração” – quando a sala de redacção era “a escola” onde aprendiam progressivamente os segredos do ofício – apoquentados com o presente e o futuro da sua profissão. Mas não podemos ignorar que os principais responsáveis dos media actuais são os seus administradores (mandatários de quem lá pôs o dinheiro) e os directores-de- informação, estes com carteira profissional de jornalista mas, pelos vistos, incapazes de contrariar os imperativos sustentados pelos primeiros.
Como não verberar também, uma vez mais, a publicidade que nos esgota a paciência e nos corrompe o espírito!? A suas imagens de propaganda comercial enxameiam os ecrãs dos televisores e computadores, agora até em inúmeros Sites informativos a que podemos aceder na Internet! Pode tratar-se do meio de financiamento mais à mão destas empresas, mas isso não perdoa a sua manifesta perversidade suave. Neste capítulo, não temos complacência para com nenhum dos seus intervenientes: canais TV (incluindo a RTP para a qual todos pagam, juntamente com a tarifa da electricidade), empresas “pub”, psicólogos, criativos, artistas – e até os pais que “vendem” os seus filhotes por um prato-de-lentilhas…
Finalmente, que o áudio, quer o audiovisual, trazem-nos constantemente sons onde palavras estereotipadas se misturam com imagens trepidantes e a música remanescente mais parece um amontoado de frases onde a harmonia cedeu definitivamente o seu lugar ao ritmo e o primitivismo cultural (com toda a beleza e a verdade que ele por vezes encerra) readquire expressões muitas vezes selvagens. Mas é isso que põe em delírio os públicos dos festivais-de-Verão cujos protagonismos se situam e constroem agora na sempre nova procura de afirmação de “identidades” – quanto mais estranhas e “inovadoras”, melhor!
JF / no pino de um Verão por vezes abrasador e no meio de uma paisagem rural já muito chamuscada, 2022