O impacto mundial gerado pelos acontecimentos de 8 de Janeiro de 2023, no meu entendimento, devem ser analisados no quadro epistemológico dos movimentos sociais, políticos e ideológicos que caracterizam as sociedades contemporâneas. As contradições e os conflitos gerados pela maioria das sociedades contemporâneas capitalistas, e em menor grau pelas sociedades de tipo comunista, socialista e fascista, etc, permitem-nos extrair ilações do que podemos denominar, hoje, de manifestações pautadas pela violência física/simbólica. É indubitável que a base de socialização do imaginário coletivo dos manifestantes apoiantes de Bolsonaro tem uma matriz fundante da história do Brasil que é atravessada pelos valores civilizacionais judaico-cristãos. As dicotomias extraídas contra as perversões do lulismo que governou entre 2003 e 2016, tornaram fácil a criação e solidificação de um movimento social radical que explica pela sua continuidade no poder como salvador da pátria brasileira.
Se pensarmos no Brasil que é simultaneamente um país e um continente, logo à partida devemos equacionar das dificuldades executivas, jurídicas e legislativas em construir um Estado-Nacão sólido e identitário, como tem sido apanágio nas sociedades denominadas de democráticas em termos institucionais e estruturais. Esta interminável solução histórica no Brasil faz com que a Constituição não passe de uma retórica formal que é corroída e pervertida dia a dia pelos agentes do Estado-Nação através dos poderes executivo (Palácio do Planalto), jurídico ( Supremo Tribunal Federal) e poder legislativo (Palácio do Congresso). Esta descaracterização da política como profissão e da ideologia como força política identitária dá azo a uma corrupção generalização que culmina, em algumas vezes, em violência física. Nesta assunção, os valores da ação política são subvertidos e instrumentalizados pelo exercício do poder e do dinheiro em proveito próprio. Nestas circunstâncias, a religião, a ideologia política, a moral e a ética são chamados a terreno como força maior de salvação da pátria brasileira. Bolsonaro é a expressão genuína desta realidade, o que não impediu que durante o seu reinado cometesse atropelos de todo o tipo contra a liberdade de expressão e inclusive fosse fautor de grandes negociatas políticas assentes numa corrupção generalizada.
No dilema da corrupção mundial, o Brasil não escapa a esta realidade histórica. Desde a implantação da Republica, em 15 de Novembro de 1889, que esse fenómeno se tem desenvolvido, progressivamente, acompanhando o processo de industrialização e de urbanização da sociedade brasileira. Todavia é de elementar bom senso não padronizar os lugares comuns da complexidade e abstração em relação ao comportamento humano no que toca à emergência da corrupção. Com as TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) o fenómeno em causa é produzido, distribuído, trocado e consumido de forma analítica-simbólico, não obstante a sua complexidade e abstração virtual. Uma das modalidades para a consecução prática dessa realidade são as redes sociais. Estas, em alguma medida, também são e foram uma das formas emergentes que estiveram na origem da luta contra a corrupção e que deram origem às manifestações violentas de 8 de Janeiro de 2023 em Brasília. Seguindo o mesmo raciocínio, o bolsonarismo como movimento político e ideológico explica-se pela defesa intransigente dos valores conservadores autoritários assentes na essência da religião, família, pátria e na ideologia do anti- comunismo. Foi e é um movimento social de reação e negação da governação de Lula da Silva e Dilma Roussef do PT.
O Brasil, sendo mais um continente de que um país na sua diversidade territorial, geográfica e cultural, é também de uma imensa desigualdade e profundos antagonismos económicos, sociais, políticos e culturais. É um caldeirão de contradições e conflitos, cada fez mais efervescente, que se resume a uma guerra civil interindividual e grupal plasmado no roubo, na corrupção e na violência física. Como continente, a grande diversidade dessas situações traduz-se numa grande dificuldade de socializar as interdependências e complementaridades executivas, jurídicas e legislativas entre os 27 estados. Estas diferenças dificultam bastante a construção de uma identidade coletiva que permita construir um Estado-Nação no sentido clássico do termo. Na falta agregadora e identitária a partir da economia, da política, da sociedade e da cultura que subsistem no Brasil, em última instância, é a religião e o futebol que preenchem esses requisitos. Só através destes fatores estruturantes e normalizadores podemos explicar a fome e a pobreza endémicas subsistentes nas condições infra-humanas de uma parte substancial da população brasileira. A polarização das contradições e conflitos, a este nível, emergem basicamente na submissão escravocrata a partir dos pressupostos religiosos de Deus ou na força bruta da violência física geradora da morte.
Por fim, estamos a assistir ao descrédito mundial de todas as ideologias ou modelos de sociedade que se inscrevem nos parâmetros civilizacionais judaico-cristãos e que dicotomizam, mecanicamente, a vida da morte, o bem do mal, o amor do ódio, etc.. Esta dicotomização traduziu-se em modelos contrastantes de sociedade, sendo que os mais representativos expressam-se através do capitalismo, socialismo, comunismo e fascismo. Estes modelos, sem exceção, estão em crise, mas o capitalismo pela força dos mecanismos do mercado e da ideologia e ação política liberal, estando em crise mundial, têm, no entanto, grande capacidade de auto-regeneração das suas contradições e conflitos. O comunismo da China se bem que aparente uma relativa harmonia social e política, a sua permanência fora dos mecanismos da crise económica mundial, só existe porque as transnacionais capitalistas instaladas no seu território dão-lhe força interna e externa, mas que, por outro lado, também potenciam a razão de ser das transacionais que são a razão de ser do mercado de ideologia que opera a nível mundial.
Todo este panorama que acabei de descrever também se passa no Brasil. Neste país a relação entre eleitos e eleitores é cada vez mais perversa e descrente. Essa relação deixou de ser ideológica e política, e deixou de ser pautada por valores substantivos da denominada democracia. O mercado da ideologia e da política é cada vez mais global e pela via das Tecnologias de Informação e Comunicação. Estas são cada vez mais potenciadas no processo de aculturação às escalas local, regional, nacional e continental. O Brasil, nesse aspeto, é muito “sui generis” pese o número quase infinito de partidos e combinações de exercício ao nível dos 3 poderes. A violência gerada no dia 8 de Janeiro de 2023 não é de admirar, porque já tinha sido há providenciado em manifestações junto das forças armadas depois dos resultados das eleições presidenciais de 30 de Outubro desde 2022. Todavia, a violência é um lugar comum na vida quotidiana da sociedade brasileira. O espanto do ataque ao espaço geográfico dos três poderes não seria de admirar e até para alguns poderes bastante previsível. Ainda que a violência física seja endémica no Brasil e não seja vista como uma dimensão simbólica, não seria de espantar das dezenas de mortes que emergem todos os dias na vida quotidiana dos brasileiros e das brasileiras. Mais de que tudo é de admirar que a força estruturante e instituinte das forças armadas brasileiras pareça um mundo à parte da sociedade brasileira e elas se revejam, totalmente, independentes dos poderes executivo, jurídico e legislativo. O silêncio a que se têm remetido e a cumplicidade que têm tido com a ação dos defensores de Bolsonaro, em 8 de Janeiro de 2023, é bastante demonstrativo da paz podre que reina entre os vários poderes que governam o Brasil.
Outro elemento elucidativo que transparece no dia 8 de Janeiro de 2023 é a transformação mediática numa mercadoria analítico-simbólica que produz, distribui, troca e consome, virtualmente, em direto, como se tivéssemos a consumir uma outra mercadoria qualquer. Antes qualquer sublevação, revolução, manifestação, greve, etc., só era percecionada, entendida, identificada por aqueles ou aquelas que nelas participavam. Hoje assiste-se ao consumo de mercadoria assente na informação, conhecimento e energia humana, que é interpretada e explicada por uma multidão de jornalistas, comentadores e especialistas de natureza económica, social, política e cultural, onde tudo vale, desde a verdade, mentira, à especulação e à alienação e, por fim, consumida por uma multidão de espetadores de na sua grande maioria atravessados pela ignorância.
Não se pode imaginar o que segue no Brasil depois de 8 de Janeiro de 2023. Os ditames do capitalismo a nível mundial e, em certa medida, as premissas modelares do modelo democrático, com quem convive melhor, permite-nos pensar que as forças armadas do Brasil não vão enveredar por um golpe de Estado. O tempo nos dirá se esta hipótese se verificará ou não.
José Maria Carvalho Ferreira