Ensaio: Usos e costumes

Na longa história dos seres humanos o apetite sexual sempre teve um lugar importante, mas as maneiras de o satisfazer foram variando muito com as culturas e civilizações. Neste quadro, desde há muito que as mulheres se embelezaram com pinturas para a “guerra de sexos”, tal como homens
primitivos se pintavam para os combates contra tribos rivais. A atracção ou a sedução usam muitas vezes sinais idênticos aos da repulsa e rejeição para o estabelecimento de relações inter-individuais muito fortes, como as de amor ou raiva. Tal como ocorre os machos baterem-se agonicamente entre
si pela apropriação das fêmeas de que se acham merecedores.
Tudo isto se perde nos milénios da evolução, mas estamos talvez agora na ressaca dos efeitos das libertações operadas pela modernidade, em que uns querem perseverar por idênticos caminhos de individualização das relações sociais ignorando os eventuais efeitos negativos que eles possam ter sobre terceiros e outros se aferram desesperadamente a crenças e a representações sociais tradicionais, algumas delas com vários séculos de consolidação e indisfarçáveis enraizamentos regionais. Basta ter visto, por estes dias, os documentários televisivos Cycling in Japan ou a reportagem da Cândida Pinto sobre os angolanos deambulando entre imbondeiros à espera de uma
decisão política eleitoral.
É verdade que, do nosso ponto de vista Ocidental, essas libertações tiveram o cunho de uma humanização das relações sociais, quer pensemos no abandono das crenças religiosas como código fundamental do entendimento e da acção dos humanos, quer tenhamos em vista os
questionamentos sociopolíticos que sustentaram durante séculos e milénios um poder estatal fixado na pessoa de um soberano (e sua descendência), que podia estender-se sobre nações e impérios; ou, genericamente, o predomínio privado e público dos homens sobre as mulheres. No primeiro
caso, as repúblicas e as democracias vieram dar uma primeira formulação a esse desiderato, embora rapidamente tenham mostrado a sua fragilidade e permeabilidade a desígnios imprevistos e perversões autoritárias. A recentíssima libertação social das mulheres – coisa do século XX e ainda
do nosso tempo – concretizou já diversos objectivos (no plano do direito civil, dos discursos públicos e em certas práticas sociais) mas mostra-se com dificuldades para vingar no plano da igualdade no trabalho e na repartição das tarefas domésticas. E, entretanto, afloram efeitos prejudiciais para a educação dos filhos, talvez para a consistência de uma vivência enriquecedora no núcleo familiar e, no limite, para a própria demografia.
Nada é simples e linear. Transformações desejadas trazem frequentemente consigo novos problemas. Os optimistas dizem que isso se verá em tempos seguintes; os mais cépticos, emitem os seus avisos de cautela.
Nos padrões da estética, o romantismo oitocentista foi varrido pelo realismo novecentista (incluso o “socialista”) e, em certa medida, este pelo “modernismo”, pelo surrealismo, pelo abstraccionismo, pelo “desconstrucionismo”, et cœtera. A pintura, a escultura, a música, a dança, a literatura – nenhuma disciplina escapou a estes avatares. As artes circenses, competitivas e tauromáquicas todas elas vêm registando, de maneira mais ou menos evidente, a elevação da consideração social
pelas mulheres e um maior respeito pelo bem-estar dos animais mais próximos de nós, embora aqui de modo muito desigual, porque afectado pelas ideologias “animalistas”, excessivamente unilaterais e pouco críticas dos diversos contextos históricos e culturais. Mas, em geral, todos estes campos tenderam para a “espectacularização” das suas exibições, com a multiplicação da variantes e subdisciplinas, de vistosas celebrações vencedoras e de efémeras “idolatrizações”. Guy Debord, que em 1967 escreveu La société du spectacle, haveria de rir-se se pudesse contemplar a sociedade mundial de hoje. Por seu lado, a arte de síntese que é o cinema (e, por aproximação, o documentarismo ou a fotografia), porque de modo mais próximo e mais intensamente reflecte os contextos sociais em que se insere e a maneira como o cineasta os quer apresentar, é talvez a actividade criativa menos tributária dessas pressões comunitárias e conjunturais – quero dizer,
portanto: mais livre –, a despeito da indústria que o comanda (financiamento das produções, promoção, distribuição, censuras, star system, etc.) sempre fazer prevalecer os seus interesses e os seus valores – como é desde há muito o caso da violência e, hoje, de uma exploração desenvergonhada da sexualidade.
Há apenas décadas atrás, a preservação da virgindade até ao casamento era uma imposição social que mortificava os jovens, e fundamentalmente as mulheres, pois aos rapazes a hipocrisia pública apontava outros caminhos.
A superação destes tabus, por libertadora que tenha sido – e foi –, não resolveu porém, por si só, a delicadeza e importância das primeiras experiências sexuais. E a “libertação do sexo”, tipicamente ocidental e novecentista – na exasperada procura de um “tutto e subito” –, veio também trazer novos problemas que não se resolvem apenas com a ausência de censura na linguagem, com umas aulas de “educação cívica” nem com novas “obrigações” para o chamado Estado social ou para a sua
componente sanitária.
Em todo o caso, os estereótipos afloram ou inscrevem-se agora com frequência também na literatura de ficção que se vai publicando. Atentemos em José Saramago que assim começa um dos seus celebrados textos:

«Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e a eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia
mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. […]»

(Caim, Alfragide, Caminho, 5ª ed., 2011, p. 11)

E assim sucessivamente… Quem apostaria que o seu enorme sucesso de vendas se possa ter devido, em boa medida, à sua técnica de escrita, corrida e com escassa pontuação, sem parágrafos nem maiúsculas nos substantivos próprios? As roturas e o inédito são hoje, só por si, talvez mais valorizados do que alguma vez o foram.
E um outro estilo, sem nada de parecido com o anterior mas entendível no quadro do deprimente ambiente da epidemia Covid, pode ser exemplificado com este extracto de um “romance Dada”:

«[…] Ma COP, Conseillère en Orientation Psychologique, aurait-elle pu travailler sur mon cas, au cas où elle aurait eu l’habitude de travailler? Dans des délais impartis? Résumons, lors d’une longue introspection, dans le cas où il ne faut pas compter que sur soi-même, on fait do it yourself et le tour est joué. Si j’étais dépendant affectivement, je n’étais pas paranoïaque. Les relations glaciales, je les
évitais tout de suite, de peur de me brûler les doigts et ensuite, il s’ensuit des torticolis qui sont bétons à dégager. Ma Maîtresse, Choupette, Rainette, m’avaient toujours trompé, la plupart du temps par idiotie. J’imaginais le rire sardonique d’un spécialiste qui m’annoncerait que mes distorsions cognitives s’expliqueraient par mes rapports amoureux inassouvis avec ma mère, mes soeurs, leurs copines et toutes ces fracassées qui me tournaient autor, mais je ne me souvenais plus du tout de mère ou de soeurs. […]»
(Bruno Lefebvre, Je suis un pauvre type, Paris, Éd. St. Honoré, 2021, p.98).

Et ainsi de suite…
Na música, a harmonia vergou inteiramente sob o peso do ritmo. Não falamos aqui da música sinfónica, de câmara ou da moderna do século XX,bem como da ópera, cujo entendimento sempre ficou reservado às elites culturais. Mas a própria música ligeira com composições orquestrais, a
opereta ou os grandes “musicais” americanos, que durante algumas décadas entusiasmaram artistas e encheram as salas de espectáculos, desapareceram quase por completo. O que hoje tem sucesso, audiências e atrai o investimento de empresas discográficas e dos promotores de espectáculos
são as “bandas” que combinam a batida fortíssima da bateria com os sons electrónicos dos “solos” e dos “baixos”, com o sincopado das teclas e com a voz amplificada de um leader, geralmente desgrenhado, propositadamente roto e com gestos provocadores que o público aplaude,
quanto mais “selvagem”, melhor.
Descontemos o saudosismo natural dos idosos e as evidentes limitações que o espaço e o tempo impõem a cada nova geração: houve uma época em que músicas populares nacionais (da chanson française ao nosso fado, dos blues americanos à canzone transalpina, e por aí fora) transmitiram
mensagens, sentimentos e momentos de beleza a milhares e milhões de pessoas. Foi um fenómeno moderno que emergiu de criadores e intérpretes mais ou menos artesanais, que usavam os parcos meios de difusão industriais já existentes (o disco, a rádio), mas encontrava uma receptividade emocional imensa (e intensa) nos diversos meios aburguesados e populares urbanos a que correspondiam. Essa correspondência era de tal maneira viva (e pessoalmente vivida) que pôde
ficar impressa nas memórias mais recônditas de todos os envolvidos, sempre prontas a ressurgir quando apropriadamente estimuladas, ainda com alguma emoção. Algo de semelhante acontecia com o teatro, mais ou menos revisteiro, “de boulevard” ou de alta-comédia. É, porém, improvável
que o mesmo aconteça agora com a generalidade dos “maciços” espectáculos musicais que levam ao rubro emocional multidões de jovens (ou nem tanto), mas apenas por um “aqui e agora”. Cada época tem as suas marcas próprias e é perigoso dizer-se que umas são “melhores” do que outras; mas há um critério que pode ser retido, além da complexidade musical da partitura, que é o da sua perdurabilidade na memória das gentes.
E, nesse ponto, o tipo de música a que nos referíamos acima bate aos pontos, geralmente, os hits de agora. De modo equiparável à música, a suavidade e os enchaînements do bailado clássico têm vindo a ser substituídos pelos movimentos desarticulados ou rastejantes do pós-Béjard. Há quem goste, e obviamente estão no seu direito. Mas é duvidoso o impacto positivo que daí resulte para as vivências societais.
A “globalização” comunicativa e económica produziu um novo e forte abanão em tudo isto e ainda muito maior nas percepções, comportamentos e atitudes dos indivíduos e das classes um tanto melhor situados nos escaparates sociais, em todo o mundo.
O francês Jean-Christophe Ribot documentou há dias no canal Arte o seu percurso de pesquisador do que é hoje a tendência do “O que eu quero é ser feliz” – ou dos pais que, com a maior sinceridade, só querem que as suas crianças “sejam felizes”. É uma tendência forte das sociedades
individualistas que temos vindo a desenvolver. Para Ribot, o “negócio da felicidade” está em plena expansão, e rende bom dinheiro aos investidores.


«Pour assister à un séminaire d’Anthony Robbins, gourou du‘développement personnel’ aux Etats-unis, il faut débourser entre 6.000 et 8.000 euros. “Est­ce que les gens vont sortir avec des idées qui vont les rendre plus heureux ou bien des idées qui vont détruire leur vie?”, s’interroge le psychiatre Christophe André» refere Ribot (Le Monde, 30.8.2022).


Cães e gatos domésticos existem hoje como substitutos da afectividade para as pessoas sós, não somente os solteiros e viúvos, divorciados, crianças ou portadores de alguma deficiência genética, mas também inúmeras mulheres e homens adultos já descasados e infelizes, funcionando
como compensação da ausência de filhos ou de uma forte relação estável com um parceiro de vida.
O laxismo e a falta de atenção às crianças por parte de pais assoberbados no trabalho ou esgotados nos seus relacionamentos afectivos entre adultos, remete para a escola muito do que, bem melhor, seria desempenhado no espaço familiar.
Professor, é uma profissão que já ninguém quer, pela incapacidade que sentem em poder controlar uma classe de crianças – e sobretudo de adolescentes ou jovens – que os pais não souberam ou não quiseram educar. Também porque já não sentem reconhecida a sua autoridade-de-saber na sala de aula, e ninguém na sociedade distingue e eleva a importância que antes era atribuída à sua missão educativa. A sindicalização (no sentido imagético de “proletarização”) do pessoal do ensino geral, operacionalizando as suas insatisfações e massificando as respectivas acções de protesto ou reclamação, também tem contribuído para o enfraquecimento do seu prestígio na comunidade.
A própria tendência já inscrita na pedagogia actual de que as crianças podem e devem aprender por si próprias, pesquisando (na máquina-computador) e atingindo a (sua) verdade, se é certo que lhes estimula a inteligência e organiza a criatividade, também não deixa de contribuir para uma auto-suficiência falsa e enganadora, quando não para uma arrogância pessoal que, em contexto grupal, se torna muitas vezes geradora de atitudes a-sociais, quase a um passo da delinquência. Diz-se, e com alguma razão, que os jovens aprendem hoje mais na televisão, e sobretudo nas “redes”, do que na escola, mas não se tira daí a conclusão da negatividade de tal diagnóstico nem se procuram novos meios para lhe responder com eficácia.
Deste modo, os professores têm cada vez mais transitado para a função de uns limitados transmissores-de-saberes-operativos, equivalentes aos muitos formadores que hoje povoam as diversas instituições e sectores da sociedade, sejam económicos ou outros.
Evaporaram-se os efeitos que, no Ocidente e onde se impôs a sua civilização, antes eram fornecidos pela religião cristã e pela educação operada no espaço familiar. Eram constrangimentos culturais que
disciplinavam a liberdade de pensamento e de actuação individual, mas também factores de igualdade e solidariedade entre os que se encontravam sujeitos a idênticas condições. A escola, a imprensa e as liberdades públicas características dos Estados modernos abriram a porta e estimularam uma muito maior liberdade criativa e de pensamento que, associada aos factores
de coesão classista (económica e social) ainda existentes, permitiram a enorme impulsão que se verificou de movimentos associativos e de ideologias políticas, fontes do liberalismo que passou a predominar no Ocidente. Mas daqui também brotaram, em seguida, vanguardas dirigentes,
aptas e sequiosas de impor as suas crenças e orientações. Se nas artes (da literatura, cénicas, musicais e outras) isso apenas teve como consequência uma aceleração na mudança dos padrões de gosto e nas modas – e coisa parecida poderá ter acontecido nas ciências sociais e humanas –, na política tal processo traduziu-se no apetite pela conquista do poder governamental dos Estados (por mimetismo, também em outras instituições) e no aperfeiçoamento das técnicas de acção dos “grupos de pressão” e dos lobbies, e da influenciação da opinião pública, com vista à conquista desses poderes ou, pelo contrário, para influenciar negativamente a sua acção.

Tudo isto se traduziu numa exasperação das lutas entre rivais para a ocupação do poder de Estado, com o concomitante enfraquecimento do necessário consenso para a manutenção e o desejável aperfeiçoamento dos mecanismos de representação popular. Seja ou não consequência disto, o
que vemos hoje é o renascimento dos condottieri e das lideranças autoritárias.
Estamos, de facto, numa época de narcisismo exacerbado e de um franco esbatimento das solidariedades. Ou, em termos mais filosóficos, na “era das singularidades” onde domina «uma exaltação não apenas das semelhanças que levaram à reivindicação da igualdade no decurso do desenvolvimento do individualismo, não apenas das diferenças, mas ainda e sobretudo das
especificidades individuais», como afirma Francesca Rigotti em L’Era del Singolo (Torino, Einaudi, 2021).

JF / .Set.2022

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